quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Clássicos: Bob Dylan Live 1966: The Bootleg Series Vol.4, 'The Royal Albert Hall' Concert (1998)





Selo: Columbia
Produção: Jeff Rosen, M. Claydon, Michael H. Brauer e Steve Berkovitz
País: EUA
Data: 10/1998

Quando o álbum duplo pirata mais lendário de todos os tempos finalmente viu a luz do dia oficialmente, o famoso apresentador da BBC Andy Kershaw tirou as palavras da boca de todo mundo ao declarar: "Não consigo acreditar que finalmente lançaram isso. Não paro de olhar o meu disco". O show no Free Trade Hall em Manchester, no dia 17 de maio de 1966, totalmente acústico na primeira metade e com os Hawks na segunda, por fim recebeu todo o tratamento do selo Legacy. Traz som muito melhorado, além de, na edição original, um livreto com direito a todas as fotos imprescindíveis da época e um artigo esclarecedor de Tony Glover, velho amigo de Dylan.

Durante anos acreditou-se que esta gravação havia sido registrada em uma das duas últimas apresentações de Dylan em 1966 (a turnê foi encerrada em decorrência da famosa queda de moto) no Royal Albert Hall em Londres, com os Beatles e o resto da realeza do rock na plateia e Dylan negando que qualquer de suas músicas tivesse a ver com drogas ou algo do gênero. Mais tarde descobriu-se que na verdade este show aconteceu no Royal Albert Hall de Manchester, vulgo Free Trade Hall, hoje fechado. Ninguém que esteve lá seria capaz de esquecer aquele grito fatídico de "Judas" - e, no que ainda parece milagroso, o sensacional documentário de TV 'No Direction Home' , de Martin Scorcese, chega a mostrar o evento em questão. Andy Kershaw descobriu o culpado do grito em um fascinante documentário de rádio da BBC, 'Ghosts Of Electricity', que foi revisado e retransmitido em Setembro de 2005, na época de 'No Direction Home'.
Menos conhecida é a história estranha de como esse show foi lançado. Como explicou a 'Record Collection', alguns 'bobcats' alegam que Jeff Rosen e sua equipe deturparam de alguma maneira o som desta fita sagrada. Quando a Sony anunciou pela primeira vez o projeto, em 1995, e mais tarde o deixou de lado, os discos idealizados de pronto surgiram no mercado pirata como 'Guitars Kissing And The Contemporany Fix', com diversas pequenas imperfeições eliminadas. Isso foi novamente retrabalhado: nivelou-se o volume da gravação do primeiro disco em mono, eliminou-se um solo durante a execução de "Mr Tambourine Man" e acrescentou-se o pequeno e breve trecho do Hino Nacional dos EUA no final. Todo o show sofreu um reposicionamento do ponto de vista da sonoridade e a voz de Dylan recebeu um ajuste fino, principalmente nos momentos em que faz comentários entre uma música e outra. "O novo lançamento acrescenta uma outra dimensão e capta o som rascante ligeiramente distorcido e quase sujo do sistema de amplificação superexigido em um ambiente amplo".
A Columbia admite que as fitas Nagra, que gravaram o som direto dos alto-falantes, acabaram durante as duas canções mais longas, "Desolation Row" e "Visions of Johanna", e que os trechos omitidos tiveram de ser recortados de outra fonte, algo perceptível apenas com fones de ouvidos. O disco da parte acústica foi ligeiramente acelerado (cerca de 2%) em relação as gravações das cópias piratas. O meticuloso Peter Doggett, autor de livros sobre música, comprovou isso com seu piano e seus ouvidos. Por outro lado, a pausa dramática entre "Ballad Of a Thin Man" e "Like A Rolling Stone" é apresentada em disco pela primeira vez. A metade do show que traz instrumentos elétricos provém de uma fita gravada em três pistas com microfone separados localizados na frente do palco pela londinha IBC, que gravou quatro desses espetáculos cataclísmicos com o intuiuto de lança-los em um álbum ao vivo. Ainda faltam três, então.
Quanto às interpretações daquela noite, Doggett acredita que a parte acústica está amansada em comparação com as outras da turnê, especialmente o som catedralesco da gaita de Melbourne, "em que Dylan parece tão chapado que é impressionante que ainda esteja vivo". Aqui, "Mr Tambourine Man" não "se espirala em loucura decadente" como aconteceu em outras apresentações no Reino Unido. Quanto à outra metade do espetáculo, com instrumentos elétricos, trata-se simplesmente "do melhor show de rock de todos os tempos".
A melhor forma de entrar nessas perfomances é por meio de impressões sonoras da mente do próprio Dylan na época, que vão além da lógica ou da humanidade. Ele afirmou numa entrevista coletiva em Beverly Hills: "Eles não podem me machucar. Óbvio que podem afogar você nos esgotos, colocá-lo no metrô e carregá-lo até Coney Island e enterrar você embaixo da roda-gigante. Mas eu me recuso a ficar sentado aqui me preocupando com a morte".
Conforme ele afirmou a revista Rolling Stone em 1969, "fiquei na estrada por quase cinco anos. Isso me deixou esgotado, andava drogado. Foi por isso que tive que começar a usar um monte de métodos diferentes para me manter acordado, alerta". ?E, como comentou em 'Biograph', "naquela época, os sistemas de som não eram tão sofisticados quanto hoje. Costumávamos levar nosso proprio caminhão de som só para dar uma melhorada naquelas salas de espetáculo. Nesses lugares quase nunca tinha alguém responsável pelo som. A gente mal conseguia se ouvir. Acho que nos saímos muito bem com o equipamento que tinhamos que usar".
Além do ótimo texto do encarte, que começa com as confusões na estréia de ' A Sagração da Primavera' de Stravinsky, há um relato completo dessa noite insana no excelente livro 'Like The Night, Bob Dylan And The Road To Manchester Free Trade Hall (1988)' escrito por uma testemunha ocular dos fatos, C. P. Lee. Disse ele para a revista britânica de música 'Uncut': "Minha memória mais marcante desta noite é medo. Nada havia me preparado para o barulho, a animosidade daquela noite. Foi um confronto direto, na cara. Sério, já na época achei que havia acabado de presenciar algo histórico". Havia muita gente ensandecida na platéia. Mas a primeira parte do show deu aos 'folkies' a certeza de que Dylan não os havia abandonado. Então os amplificadores foram ligados, a música de distorceu, as vaias começaram "e veio o confronto".
Brian Hinton, autor de biografias de Joni Mitchell e Elvis Costello entre outros se lembra de uma conversa que teve com o poeta visionário Barry McSweeney - que nomeou uma editora de poesia em homenagem aos cadarços das botas que Dylan usava naquela noite - pouco antes de morrer de tanto beber, em que contou que se lembrava de haver se virado na apresentação de Newcastle para dar uma cabeçada no homem atrás dele, que vaiara a metade plugada do show. A turnê foi desse tipo, passional, embora no fim o conflito tenha se dado por um prêmio menor do que o buscado na luta pelos direitos civis, pois na visão de alguns, Dylan teria abandona quem foi assisti-lo e os traído em função de sua nova música drogada.
Quanto ao restante deste CD duplo, a capa exibe uma foto de Jerry Schatzberg em que Dylan aparece com uma expressão inescrutável. O livreto original traz uma série maravilhosa de instantâneos de diversos fotográfos, entre eles Barry Feinstein e Don Hunstein, da turnê de 1966 e também o fiasco do Newport Folk Festival, mostrando Dylan em sua camisa de bolinhas. Há outra foto da mesma sessão que rendeu a capa do primeiro álbum de Dylan, não espelhada, finalmente, e um preto e branco comovente com Pete Seeger. O homem de óculos escuros que pos com jovens mal-ajambrados vive em um universo diferente.

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